Este conteúdo integra uma série de estudos produzidos pelo Comitê de Mulheres da STILINGUE acerca do agravamento da violência contra mulher em período de quarentena e isolamento social. Na primeira parte elucidamos sobre violência doméstica, agora, vamos discutir a violência contra a mulher preta.
Antes é preciso trazer um cenário que antecede todos os tipos de violências acometidas à população preta e que, consequentemente, tornam a mulher preta ainda mais vulnerável à violência doméstica: o racismo.
Segundo informativo “Desigualdades Sociais por Cor e Raça no Brasil”, a população negra tem 2,7 mais chances de ser vítima de assassinato do que a branca (IBGE, 2010).
Dados apresentados pelo Sistema de Informações do Ministério da Saúde informam que, em seis anos analisados (2012-2017), foram registradas 255 mil mortes de pessoas negras por assassinato. Considerando pretos e pardos, totalizaram-se 98 assassinatos a cada 100 mil habitantes. Ao fazer o recorte apenas dos homens negros nessa faixa etária, a taxa de homicídio sobe para 185. Para as mulheres jovens, a taxa é de 5,2 entre as brancas e 10,1 para as pretas e pardas.
Sermos mulheres não nos torna “iguais” e nem mesmo nos torna vulneráveis aos mesmos índices de violência.
Ser mulher branca e ser mulher preta traz diferenças decisivas como privilégios e acessos.
Embora a mulher branca também sofra violência, ao considerarmos os fatores sociais como acesso a melhores salários, entrada e permanência no mercado de trabalho e principalmente a questão racial, temos então a mulher branca representando um número menor de vítimas de violência em relação à mulher preta.
Considerando o contraste racial no contexto Covid-19 e violência doméstica, é visível a discrepância no volume de coleta de publicações ao compararmos universo mulher preta e mulher branca.
Racismo e Covid-19
Você sabia que há uma morte para cada três brasileiros negros hospitalizados por Covid-19? Enquanto isso, entre brancos a proporção é de uma morte a cada 4,4 internações. Essa análise da Agência Pública escancara o racismo estrutural que define a desigualdade em nosso país.
Quando se trata das redes sociais essa proporção também é evidente. Postagens com que contém os termos morte, Covid-19 e racismo tiveram aumento ao longo do período de pandemia, considerando os meses de abril a junho.
Um estudo do Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde, grupo da PUC-Rio, confirma que pretos e pardos morreram por Covid-19 mais do que brancos no Brasil.
Em termos de óbitos por Covid-19, pessoas sem escolaridade têm taxas três vezes maiores (71,3%) em relação àqueles com nível superior (22,5%).
Combinando raça e índice de escolaridade, o cenário fica ainda mais desigual: pretos e pardos sem escolaridade morrem quatro vezes mais pelo novo coronavírus que brancos com nível superior (80,35% contra 19,65%).
O grupo analisou a variação da taxa de letalidade da doença no Brasil de acordo com variáveis demográficas e socioeconômicas da população.
Cerca de 30 mil casos de notificações de Covid-19 até 18 de maio disponibilizados pelo Ministério da Saúde foram levados em conta.
Esse cenário se justifica ao considerarmos que a população preta configura o maior índice de desemprego, salários mais baixos e menor índice de escolaridade. Isso a coloca diante de dois cenários cruéis no atual momento de pandemia que enfrentamos: os que estão em casa por estarem desempregados e os que estão expostos aos riscos pois, pela renda ser decisiva na família, precisam “sair para trabalhar”.
Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD, 2020), a taxa de desemprego entre os brasileiros que se declararam brancos (8,7%) permaneceu significativamente abaixo, no quarto trimestre, da taxa de desocupação dos autodeclarados pretos (13,5%) e pardos (12,6%). A taxa de desemprego média global no período foi de 11%.
Corpo preto e violências
Se adicionarmos a esta análise os estereótipos construídos sobre o corpo preto, desnuda-se ainda mais esse cenário de violência. Não é difícil puxar em nosso imaginário construído midiaticamente por meio de conteúdos como as telenovelas, a imagem de relações sempre violentas quando o casal é negro. É o casal preto que briga, aos gritos, na rua aos tapas. É o homem preto que puxa os cabelos da preta porque ela o buscou no bar. Tais representações reforçam, assim, dois fortes estereótipos: do homem preto sempre agressivo e da mulher preta sempre raivosa.
Não é à toa que, quando na novela das 21h um homem branco agride uma mulher branca com uma raquete, o espanto do telespectador seja maior. Quando isso acontece, se esbarra em uma construção social que choca quando o ato da agressão tem como personagens o homem e a mulher brancos. Já a representação do casal homem preto e mulher preta carrega o estereótipo de subservientes, raivosos, com sexualidade exacerbadas, e que por isso são merecedores da agressão.
Todos esses fatores tendo o racismo como precursor e associados à questão de gênero colocam a mulher preta como mais vulnerável à violência doméstica. Em uma sociedade estruturalmente racista que enxerga o corpo do preto como propriedade pública, ela não é agredida apenas no lar, mas também na rua, por terceiros, por vizinhos, por ex-companheiros e companheiros atuais. É a violência social que não fica restrita à “varanda” e que reflete diretamente nas relações domiciliares.
Ao buscarmos pelos termos denúncia, mulher preta(s) e racismo nas redes sociais, conseguimos visualizar no gráfico os termos Pessoas, Coronavírus, Violência policial e Crime como reincidentes.
Já o termo denúncia não aparece na amostragem, reforçando assim uma ainda presente omissão social de proteção e combate à violência contra a mulher preta.
Chama a atenção no gráfico o termo pessoas quando associado a racismo e mulher preta aparecer em primeira colocação, enquanto o termo racismo fica nas últimas colocações. A baixa reincidência do termo racismo dentro da temática mulher preta e violência se torna compreensível quando consideramos a hesitação da sociedade em compreender o que é racismo, assumir atitudes racistas no dia a dia, a contribuição para o reforço da violência contra pessoas pretas e, obviamente, contra a mulher preta.
Uma pesquisa clássica do Datafolha realizada em 1995 mostrou que 90% dos brasileiros admitiram que existe preconceito de cor no Brasil, mas 96% dos entrevistados se identificaram como não racistas.
Mais uma vez, falar sobre violência contra a mulher preta sem considerar o sistema de racismo estrutural no Brasil e como a sociedade ainda é omissa na proteção à mulher preta, inclusive contribuindo na manutenção do racismo, é um erro.
Embora os números de denúncias de discriminação racial tenham caído, de acordo com dados divulgados em 2019 pelo Disque 100 (Disque Direitos Humanos), em 2018 foram registradas 615 denúncias, no Brasil. Comparado com 2017, esse número é 33,2% inferior, quando foram registrados 921 casos de discriminação. Esses dados estão longe de representar à realidade ou mesmo soar comemorativo. Para especialistas, esse número reduzido tem a ver com a descrença no sistema judiciário de que as denúncias sejam levadas à frente.
Além da descrença com a efetividade de investigação de denúncias de discriminação racial, a mulher preta ainda protagoniza um enredo alarmante de vulnerabilidade à diversas formas de violência as quais é submetida em uma uma sociedade estruturalmente racista. A saber, a violência econômica, desmerecimento da sua identidade e insuficiência na proteção à sua vida.
Todos esses fatores sociais somados ao aumento da violência contra a mulher na pandemia colocam a mulher preta no epicentro da violência doméstica no Brasil. Somente em abril, quando o isolamento social imposto pela pandemia já durava mais de um mês, a quantidade de denúncias de violência contra a mulher recebidas no canal 180 aumentou cerca de 40% em relação ao mesmo mês de 2019.
Segundo os dados do Ministério da Saúde compilados pelo último Atlas da Violência e divulgados em 2019 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), foram registrados 4.936 assassinatos de mulheres em 2017. É uma média de 13 homicídios por dia e o maior número em uma década. A maioria das vítimas (66%) é negra e morta por armas de fogo e grande parte dos crimes aconteceram dentro da própria casa.
Ao analisar o gráfico, racismo aparece em destaque associado à demais termos: pandemia, Brasil, mundo, casa, coronavírus, covid-19, pessoas, mulher, mulheres, violência.
Ao aplicarmos o zoom sobre racismo, ficam em destaque publicações que evidenciam o racismo associado à pandemia e ações solidárias à mulheres em relacionamentos abusivos.
Tanto mulheres brancas como mulheres pretas não deveriam ser vítimas de violência. Mas, entender como o racismo está atrelado ao fator violência doméstica é fundamental para combater a mesma, compreendendo as especificidades e as formas de combate ainda que denominemos socialmente o mesmo gênero.
O Comitê de Mulheres da STILINGUE e a relação com este estudo
Neste contexto, o Comitê de Mulheres da STILINGUE Inteligência Artificial definiu como objetivo desta pesquisa analisar e relatar como as redes sociais observam e mencionam a violência doméstica em meio a Covid-19, a percepção das mídias sociais e perspectivas futuras em meio a pandemia. Além do tema emergente, não se deve desprezar o aumento das estatísticas, que por muitas vezes nem demonstram em si a realidade, visto que muitas dessas mulheres continuarão a conviver com o agressor, e ao mesmo tempo, por conta do isolamento não conseguem realizar a denúncia. As informações obtidas por meio da plataforma STILINGUE podem favorecer a reflexão e debate em torno da insuficiência de práticas e políticas voltadas para a violência doméstica neste momento.
Para ler o primeiro conteúdo da série, acesse: